Saturday, April 4, 2015

marenka mirka zdenka krasava in progress




percurso
É muito estranho pensar no processo de crescimento e construção da Marenka; o início, percurso e fim. É impossível pensar o início exato de tudo, porque acho que sempre tive a vibração dessa criatura, na maioria das vezes esmagada e encoberta, mas sempre ali, presente. Em Panidrom, ela achou o espaço tempo exato para escancarar as portas e janelas e expor um lado meu que negava e que, de certa forma, ainda nego.
Marenka não surgiu de repente, não foi entregue nas minhas mãos e nem a compreendi de um dia para o outro. É como se eu tivesse aos poucos encaixado uma peça na outra, pisando leve e receosa nesse percurso desconhecido de autoconhecimento na criação cênica. Até hoje ela é um mistério em vários aspectos e ainda é difícil assumir essa energia agressiva em toda apresentação, mas o mais interessante e desafiante é aprofundar as diversas camadas e contradições dessa criatura.
Se nos limitarmos em uma visão superficial e reducionista, Marenka será só uma mendiga grossa, arrogante e irônica, sem muito a acrescentar. Mas aprofundando nas referências, os motes para criação, as experiências vividas em processo e a vibração que ela carrega das ruas, as facetas dessa mendiga se tornam infinitas.



amuleto
No início, no primeiro ensaio de Panidrom, o João conduziu uma experiência cênica em que, observando uma fotografia na improvisação, surgiu a história do amuleto, o pequeno pato que um senhor carregava na imagem. O amuleto se chamava Carinho. Considerando que nômades não possuem espaços/objetos fixos, o amuleto se torna seu objeto de carinho, aquilo que você carrega pra onde você for. No caso da Marenka, seu amuleto começou com um pato, que virou um olho desenhado na mão, que virou uma mancha espalhada pela mão. Nas ruas e espaços públicos, ela se defende e acredita nesse pedaço de mancha como sua proteção. Apenas um detalhe, já que seu corpo inteiro já é um escudo. Sua própria fala já é um escudo. Como mulher, pobre, mendiga se não fosse toda escudo, provavelmente já não existiria.




Palhaço Paralama e Mulher Borboleta
“O circo é uma família com sobrenomes diferentes,
mas comportamentos iguais. As pessoas se ajudavam,
ninguém passava fome. Existia solidariedade, amizade.”
Nitinha Durso, minha tia

 Os personagens envolvidos nessa empreitada artística parecem retirados de um roteiro de filme, ou mesmo de uma história épica-romântica-fantástica: meu avô, Carmindo Durso (1910- 1982) e minha avó, Alice Rodrigues Ferro Durso (1914- 1993).
Alice morava na casa de seus pais, em São João do Matipó- MG. Era filha de João Ferro, um dos maiores fazendeiros da região. João Ferro era tão rico, mas tão rico que o gerente do banco reclamava dizendo que não havia mais espaço para guardar o dinheiro dele no cofre do banco. O que João Ferro tinha de dinheiro, tinha de rigidez. Ele era muito enérgico e cismava que os filhos tinham que trabalhar. Um dia, mandou Alice tirar leite de uma vaca chamada “Perigo” e o resultado foi que a vaca pisou em cima dela toda e a deixou em carne viva. Ela teve que ser deitada em folha de bananeira com óleo. Por essas e outras que talvez, para Alice, não tenha sido tão difícil abrir mão de sua casa e sua família.
Foi em 1933, quando tinha 18 anos, que chegou o circo na cidade e, junto dele, o Palhaço Paralama, vulgo Carmindo Durso. Alice e Carmindo se apaixonaram fervorosamente, e quando o circo ia zarpar para outro destino, trataram de dar as mãos e seguirem juntos com o circo. Alice largou tudo e aprendeu a ser artista de circo, mais especificamente, trapezista, se tornando a Mulher Borboleta.
    Passaram por poucas e boas. Tiveram uma linda filha, chamada Nitinha, que também tratou de se tornar artista de circo, a "Shirley Temple Brasileira". Nitinha se lembra de um dia de grande aperto quando, certa vez, chovia incessantemente por 20 dias e o circo não conseguia estrear. Estavam sem dinheiro nenhum, então, Alice decidiu abrir o cofre de Nitinha e dividir com todos do integrantes do circo. Neste dia, Nitinha chorou incessantemente.
O palhaço Paralama se vestia como um palhaço tradicional de circo: um aro de papelão listrado como gola, gravata borboleta, suspensório e chapéu de cetim. Sua roupa era branca e vermelha. Tinha uma cadela de pano, chamada “Mijoleta”. Seu sucesso era pegar a cadela e jogar em cima dos outros, falando “Mijoleta, pula!”, só que ela era presa com um elástico, e sempre parecia que ela ia cair em cima do público, mas ela sempre voltava para a mão firme do Paralama. Para castigar sua cadelinha, batia com ela no chão, dizendo “Uiuiui, segura ela!”. A cadela nunca batia em ninguém, ele tinha a percepção de espaço muito aguçada. Tão aguçada que depois que saiu do circo foi pintor e letrista, e nunca mediu nenhuma parede para escrever algo. Sempre acertava a medida das palavras no muro.
 Alice, a trapezista Mulher Borboleta, colocava 7 quimonos japoneses e ia tirando eles durante seu número do trapézio. Ao final, estava de roupa de borboleta, lá no alto. Um dia, a Mulher Borboleta caiu de 15 metros de altura e o osso chegou a sair do braço.
     Viajaram muito, por quase o Brasil inteiro, de trem ou caminhão, pois as vezes ficava mais barato ir de trem. Quem montava o circo era chamado de “marra cachorro”. Quem trabalhava no circo trabalhava até tarde e dormiam durante o dia, deixando as crianças soltas e livres, por isso quase sempre precisavam de babás e cuidadoras. Tody, um pastor alemão do circo, de vez em quando, enquanto os pais dormiam, fazia o papel de babá de Nitinha.
  Alice cansou de ser borboleta, sentiu saudade de sua família e de firmar os pés na terra. Vida de circense não era mole. Decidiram sair do circo e ir para Carneirinhos, cidade onde estavam os pais de Alice. O palhaço Paralama sempre sentiu saudade do circo e do público que o recebia com carinho. A nostalgia da vida cigana-circense, livre desse sedentarismo urbano, seduz a família até hoje, até mim.



saudade, memória
Criamos muitas composições - pequenas produções cênicas direcionadas- durante o processo e, relembrando, já nem sei mais onde e com quem surgiram alguns materiais. Alguns assuntos se tornaram recorrentes e sempre voltavam em uma composição ou outra. As vezes escolhia trazer um material novamente para a composição, mas muitas vezes ele aparecia sem que nem tivesse percebido. Isso aconteceu com os materiais sobre a saudade e a memória. Desde que pesquisei sobre as raízes artísticas circenses da minha família para a peça, fui embalada em uma mistura de nostalgia e melancolia, esperança e saudade.
Desde que Carmindo e Alice viraram material de composição, comecei a sentir falta das pessoas: pessoas da minha família, pessoas que não havia conhecido, pessoas que morreram, pessoas que foram abandonadas por alguém, pelo Estado, pessoas que picharam as paredes, grafitaram os muros. A memória é uma ilha de edição. Posso abandonar algo, mas também posso fortalecer algo: reviver algo que já estava morto. Marenka tem um pouco dessa força, aponta as frases do muro, grita saudade, expõe o ridículo dos outros, expõe as falhas, deixa o fogo queimar.




de onde veio Marenka
JUNHO DE 2013
As inundações na Europa central ameaçaram várias cidades da Alemanha, República Tcheca e Áustria, ao longo dos rios Elba e Danúbio. Nas áreas de risco, os moradores se revezavam dia e noite para encher sacos de areia para reforçar os diques. As autoridades de Praga, com a ajuda de soldados do Exército tcheco, levantavam barreiras de sacos de areia contra as águas.
Marenka ainda se encontra correndo por aí, carregando seus sacos de areia. de mentira.




na praça saens peña
COMO SE EXPOR?
COMO SE TORNAR INVISÍVEL?
COMO PESA UMA MEMÓRIA?
QUEM SE VAI, VAI PARA ONDE?

Essas foram as perguntas direcionadas para a minha pesquisa de campo no espaço que escolhi no Rio de Janeiro: a praça Saens Peña. Escolhi esse espaço, pois foi o primeiro bairro que morei e onde mais me senti "acolhida" quando me mudei da cidade pequena para o Rio cidade (des)maravilha. No meio do caos e insegurança, era lá que sentava e apenas observava as horas e pessoas passarem.
Retornei a mesma praça com outro olhar. Aparentemente familiar, nas periferias da praça se encontram moradores de rua. Nem sempre nas periferias, eles escolhem os dias de sol para tomar banho na água do lago sujo da praça. Ao olhar a praça, foram esses que me saltaram aos olhos e esses que formaram muito do que a Marenka é. Ironicamente, meu cartão de metrô estava vazio e estava sem dinheiro para voltar. Virei mais uma pedinte naquela praça.



rio de janeiro, praça saens peña.
dá licença, criança. deus te abençoe com esse panfleto do Crivella. não tenho dinheiro suficiente. o que se compra com 50 centavos? o que está invisível? ME AJUDE. porque a preocupação é com o olhar do outro.  sentei na praça. o que é mais difícil? me expor. por quê? porque dependo da aprovação dos outros. por quê? porque eu tenho medo. um senhor se levanta, abre as calças e o cinto e levanta a cueca, depois as calças e o cinto. encurvado, ele apalpa os bolsos em uma lentidão inacreditável. óculos caído no nariz e língua para fora. observa tudo, em tempo lento. abraça o joelho com as mãos. pede um picolé. volta e meia lava as mãos no lago. não tinha me dado conta de como esse lago é sujo. sujo. sujo. sujo. como os peixes sobrevivem aqui? licença. claro. daqui a pouco eu tenho que voltar. tchau. em volta do círculo de xadrez coberto, camas e camas de papelão. uma grande área de descanso e moradia. precisei pedir 3 vezes. ganhei 4 reais em 5 minutos. quantas vezes um mendigo precisa pedir? eu, fofa, meio branca, sei lá. traços finos. muito fácil se sentir sozinha. a não ser pelo olhar de um bebê que vê. olha fundo. a não ser pelo olhar do mendigo que vê e olha fundo. do outro lado da rua, por entre carros e barulhos, ele está lá. sorrindo sem dentes, balançando a mão com intensidade, como se já me amasse por anos.




a gravidez
Assim como a saudade e memória, a gravidez também foi um assunto recorrente no processo. Todos nós de alguma forma engravidamos. Todos nós acreditamos e esperamos alguma coisa do processo e do mundo. Volta e meia alguém aparecia com barriga em composição. Volta e meia era mentira. Mas, no final, ficou a Marenka grávida, de verdade. Foi preciso ser concreto e somente no final do processo entendi o porquê.
Em uma reunião de equipe, decidimos abrir cartas de tarô para todos. A carta de tarô que saiu para Marenka foi A Estrela e veio desmistificar grande parte do que acreditava dessa mendiga pessimista e grosseira. A estrela é a esperança de uma nova era, coletiva e alegre. Me dei conta que é o parto urgente de Marenka que conclui tudo o que já estava encaminhado. Panidrom não é o lugar. Panidrom não é terra fértil para nascer filho. Nenhum lugar onde não seja possível viver em condições dignas e justas é o lugar. Continuar a caminhar. Não é o fim da peça, é o começo. A estrela, hasteada lá no topo, vibrante, é a prova concreta de esperança, de uma utopia possível. Marenka é grávida de um estrela.

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